segunda-feira, 2 de novembro de 2015

Homenagem


                                                          
















Carta aos amigos mortos
                                    Sophia de Mello Breyner

Eis que morrestes – agora já não bate
O vosso coração cujo bater
Dava ritmo e esperança ao meu viver
Agora estais perdidos para mim
- O olhar não atravessa esta distância -
Nem irei procurar-vos pois não sou
Orpheu tendo escolhido para mim
Estar presente aqui onde estou viva.
Eu vos desejo a paz nesse caminho
Fora do mundo que respiro e vejo.
Porém aqui eu escolhi viver
Nada me resta senão olhar de frente
Neste país de dor e incerteza.
Aqui eu escolhi permanecer
Onde a visão é dura e mais difícil

Aqui me resta apenas fazer frente
Ao rosto sujo de ódio e de injustiça
A lucidez me serve para ver
A cidade a cair muro por muro
E as faces a morrerem uma a uma
E a morte que me corta ela me ensina
Que o sinal do homem não é uma coluna.

E eu vos peço por este amor cortado
Que vos lembreis de mim lá onde o amor
Já não pode morrer nem ser quebrado.
Que o vosso coração que já não bate
O tempo denso de sangue e de saudade
Mas vive a perfeição da claridade
Se compadeça de mim e de meu pranto
Se compadeça de mim e do meu canto.

(Sophia de Mello Breyner Andresen, in Livro Sexto)
Fonte: http://belostextos.aaldeia.net/carta-aos-amigos-mortos/